Os nomes da droga

por Luiz Henrique Santos Brandão

Droga, fármaco, narcótico, tóxico, entorpecente, enteógeno, medicina ou simplesmente “substância”. Os nomes são muitos e suas acepções variam dentro de um espectro que vai de “maldito veneno” a “santo remédio”. Tal diversidade semântica reflete não apenas a ambivalência maniqueísta instaurada pelo discurso da “Guerra às Drogas”, mas aponta para a pluralidade das formas como diferentes grupos se relacionam com diferentes substâncias bem como os sentidos, valores e funções atrelados historicamente a elas.

Mas o que há numa palavra?

Em seu romance “O Nome da Rosa”, Umberto Eco brinca com a polêmica que dominou grande parte do pensamento medieval, que foi o embate entre realismo e nominalismo. O primeiro enfatizava a existência e realidade efetiva daquilo que em filosofia são chamados de “universais”. Os universais são categorias abstratas e generalizantes, que se pretendem supra-históricas e, por isso mesmo, imutáveis. São exemplos de universais palavras como “o Homem”, “a Verdade”, “o Poder” e, no caso do livro, “a rosa”. Para o realista medieval, os nomes eram representações de uma essência universal que se manifestava individualmente, de modo que só seria possível conhecer um objeto singular remetendo-o ao universal. Só é possível conhecer uma rosa singular por termos uma ideia geral e abstrata do que seria uma rosa, sua forma, cores e proporções, e reconhecemos este conjunto de características ideais na rosa singular.

Os nominalistas reagirão, argumentando que os universais não têm existência em si mesmos, não existem efetivamente em lugar nenhum. Para os nominalistas, as palavras não passariam de convenções, signos criados pela mente humana para fazer referência a um objeto específico. Não seria possível então falar do “Homem”, dada a diversidade das singularidades humanas. Não seria possível falar do “Poder”, tendo em vista a variedade de condições em que se estabelecem relações de poder diferentes, específicas, individuais. Para o nominalismo, enquanto o particular tem existência real, o universal não passa de um nome. Os nomes não carregam ou refletem a “essência” das coisas. São abstrações obtidas a partir da observação de um grande número de singularidades.

A polêmica que se instaura na filosofia medieval entre realismo e nominalismo aponta para um problema fundamental: em que medida é possível e vantajoso utilizar conceitos abstratos para compreender objetos ou situações concretas? Até que ponto essas abstrações correspondem à realidade prática, experienciada por pessoas comuns e de que maneira podem ajudar a compreende-las? Estas categorias, estes conceitos expressos pelos nomes que damos às coisas, seriam elas imutáveis e supra-históricas ou seriam construções mentais definidas cultural, social e economicamente? Como dar conta da singularidade, da particularidade, da especificidade e, sobretudo, da pluralidade das experiências humanas se a abstração é uma característica fundamental da linguagem?

Estas questões, que parecem mesmo vagas e distantes, são imprescindíveis para pensarmos o problema das drogas em nossa situação atual. Palavras carregam consigo contextos, valores, formas de ver o mundo. Daí a militância de alguns grupos que se definem pelo uso de alguma substância psicotrópica em não chamar a substância em questão pelo termo “droga”.

A palavra em si, tal como é utilizada no meio científico, é neutra. Pode significar qualquer substância química que produza alterações no funcionamento normal do organismo. Quando administrada com o objetivo de trazer algum tipo de benefício, chama-se remédio. Quando não tem outra função senão a de causar danos, chama-se veneno. Mas fora deste meio restrito, ela carrega conotações especialmente negativas: vício, tráfico, violência, crime, doença, loucura, morte.

Temos então o seguinte problema: por um lado, somos apresentados a este conceito demasiadamente largo, que pode abranger tanto o açúcar quanto o crack e, por outro, temos o senso comum designando pela mesma palavra uma certa classe de substâncias definidas por nada além do fato de terem sido proibidas. Há assim um distanciamento entre o uso científico do termo “droga” e o seu significado corrente, tal como é usado na linguagem do dia-a-dia. Uma palavra, dois significados.

Quando alguém diz que a pessoa que cultiva o hábito de tomar café todos os dias pode também ser considerada drogada, ela está utilizando o termo “droga” tal como este é empregado na farmacologia, na psiquiatria e nos meios científico em geral. Quando a inofensiva vítima de tal calúnia se indigna frente a um disparate como este, ela está compreendendo o termo da forma como ele é utilizado, por exemplo, na legislação anti-drogas. Não se trata de disputar qual uso é o mais correto ou mais exato. Trata-se de perceber que se está falando de coisas muito distintas.

Eis então o problema, tal como foi expresso pelo dramaturgo Luigi Pirandello: “Como podemos nos entender, se nas palavras que digo coloco o sentido e o valor das coisas como se encontram dentro de mim; enquanto quem as escuta inevitavelmente as assume com o sentido e o valor que têm para si?”. O termo “droga” não possui a eficácia conceitual que pretende ter. Esta ambiguidade semântica nos coloca diante de um enorme problema: com que critérios devemos analisar as relações desenvolvidas entre as pessoas e as drogas que consomem? Como realizar políticas públicas eficientes sem uma linguagem adequada para dar conta da complexidade do tema? Como realizar um debate saudável e produtivo sem saber do que exatamente estamos falando?

Terence McKenna, grande explorador do universo psicodélico, aponta para um certo caráter estratégico implicado na utilização, por parte do Estado e, consequentemente, das leis proibicionistas, do termo “droga”. É exatamente por sua ambiguidade, por ser um termo demasiado vago e difícil de definir, um conceito cujas fronteiras não podem ser estabelecidas com clareza, que ele continua sendo o termo utilizado pela política de “Guerra às Drogas”:

“parte da razão pela qual as drogas são, para nós, um problema, é porque nós não temos uma linguagem inteligente para falar sobre substâncias, plantas, estados mentais induzidos por psicodélicos, estados mentais induzidos por sedativos, estados de excitação induzidos por anfetaminas… Não se pode ter uma ideia do problema e das oportunidades oferecidas por essas substâncias, a não ser que façamos uma limpeza na nossa linguagem. “Droga” é uma palavra que tem sido usada pelos governos para tornar impossível pensar de forma criativa sobre o problema da disponibilidade e do abuso de substâncias.” (confira a entrevista completa em: : https://www.youtube.com/watch?v=uow__z3Qo8c)

Assim como acontece com o termo “terrorismo”, a ausência de uma clara definição conceitual do termo “droga” abre espaço para uma arbitrariedade virtualmente ilimitada por parte do Estado, instaurando o que pode ser definido como um “Estado policial” ou “Estado de vigilância”. Em ambos os casos, a definição entre “amigo” e “inimigo” torna-se amplamente discricionária. Em outras palavras, “terrorista” pode ser, na prática, qualquer pessoa.

Desta forma, a assim chamada “Guerra às Drogas” segue o padrão estabelecido durante a Guerra Fria com a histeria anticomunista, que passou a combater não mais um inimigo definido e externo, mas um inimigo difuso, indefinido e interno. Tanto a guerra contra o comunismo como a guerra contra o terrorismo e a guerra às drogas são manifestações sintomáticas da implementação de um modelo de Estado e de governo que se justifica e legitima por meio do discurso da guerra. Uma guerra contra seus próprios cidadãos.

Neste ponto passamos para um problema mais grave ainda: a “Guerra às Drogas” não é uma guerra contra substâncias potencialmente tóxicas, que escravizam a mente e destroem famílias. É uma guerra contra pessoas. Mais do que isso: a Guerra às Drogas é uma guerra contra pessoas específicas, com um perfil socioeconômico muito bem definido. Segundo os dados do Infopen, 61,6% da população carcerária hoje no Brasil é negra e um terço dela cumpre sentença por tráfico de drogas. Após a alteração na Lei de Drogas, que passou a vigorar a partir de 2006, o número de presos por tráfico aumentou 480%.

O delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro Orlando Zaccone observa que o número alarmante de mortes provocadas por ações policiais e pelo sistema penal têm como marca de legitimidade a condição do morto como traficante. Logo, quando falamos de “Guerra às Drogas”, estamos falando de uma política pública que produz letalidade e encarceramento em massa de pessoas que são as mais vulneráveis do extrato social.

Da mesma forma que “desaparecido político” é uma palavra usada para encobrir crimes perpetrados pelo Estado – sequestro, tortura, assassinato e ocultação de cadáver – o termo genérico usado para se referir ao conjunto das políticas proibicionistas, “Guerra às Drogas”, é um termo que serve para ocultar a perseguição violenta e criminosa por parte do Estado à grupos sociais considerados “indesejáveis” ou as assim chamadas “classes perigosas”, bem como a imposição violenta de um certo modelo de conduta baseado em uma moralidade puritana e valores burgueses de disciplina e produtividade.

Isto posto, é urgente que nos dediquemos a desenvolver formas mais bem definidas, mais compreensivas e menos genéricas para se falar sobre o uso de substâncias. Formas que levem em conta seu aspecto cultural, suas finalidades e contextos distintos. Que o café é completamente diferente do crack é algo óbvio, e a constatação dessa obviedade é uma questão de bom senso. Mas também não é assim com a maconha, com o LSD e o MDMA? Não seria igualmente absurdo enquadrar substâncias tão diferentes, com usos e efeitos tão diversos entre si na mesma caixinha do “ilícito”?

Em seu livro “Sonhos de uma teoria final”, o físico e ganhador do prémio Nobel Steven Weinberg escreve sobre o problema criado ao se alargar demais um conceito:

“Algumas pessoas tem uma visão de Deus tão ampla e flexível que é inevitável que encontrem Deus onde quer que procurem por ele. Ouvimos que “Deus é o supremo” ou que “Deus é nossa melhor natureza” ou que “Deus é o universo”. É claro que, como qualquer outra palavra, a palavra “Deus” pode ter o significado que quisermos. Se alguém quiser dizer que “Deus é energia”, poderá encontrar Deus num pedaço de carvão.”

Weinberg está chamando atenção para o fato de que, para que a palavra “Deus” não se torne completamente inútil, para que seu significado não seja completamente esvaziado, ela deve ser usada com o sentido que as pessoas normalmente a entendem: para denotar um criador sobrenatural “adequado à nossa adoração”. Da mesma forma, por estranho que possa parecer uma inversão como esta, o conceito de “droga” empregado pelo senso comum, ainda que não científico, é mais bem definido, do ponto de vista conceitual.

Isso o corre por dois motivos: primeiro, porque o termo “droga” não desempenha no saber científico a função própria de um conceito, como é o caso do conceito de “trabalho” na física ou de “oxidação” na química. A ideia de “droga” como “qualquer substância capaz de alterar o funcionamento  normal do organismo” funciona mais como uma noção, uma ideia cuja finalidade é demarcar um campo, delinear uma área de interesse. O mesmo pode-se dizer da noção de “vida” nas ciências biológicas. Embora a definição exata do que é ou não é vida possa apresentar variações e controvérsias, a noção de “ser vivo” organiza o saber científico sobre o tema e o torna operacional.

Em segundo lugar, é preciso notar que os critérios utilizados pelas políticas proibicionistas não são científicos, e sim morais. O “tráfico de drogas”, o “porte de drogas” e o “usuário de drogas” referidos na legislação não dizem respeito ao farmacêutico, à cartela de ibuprofeno na mochila nem ao alcoólatra. A função de palavras como estas é marcar a fronteira entre o que é moralmente aceitável e o que não é. Droga pode ser para a ciência um termo moralmente neutro, mas “drogado” não.

Neste sentido, McKenna lembra que toda sociedade escolhe um pequeno número de substâncias, não importa o quão tóxicas elas possam ser, e as incorporam em seus valores culturais, ao mesmo tempo em que demonizam outras. E então isso é usado como pretexto para perseguir, de acordo com a conveniência política e os interesses econômicos do momento, os grupos que tenham incorporado estas “outras” substâncias em seus próprios valores culturais. Este fenômeno pode ser observado na proibição do ópio nos Estados Unidos como forma de perseguição a imigrantes chineses, a proibição da cocaína e introdução do crack como forma de desmobilização de movimentos negros nos anos 1960, a proibição da maconha durante o Império para excluir negros libertos da convivência urbana no Rio de Janeiro do século XIX.

Mas então, o que fazer?

Existem algumas tentativas de se referir a estas substâncias de forma mais específica e de modo a evitar a carga simbólica negativa historicamente acumulada sobre o termo “droga”. Analisemos algumas delas.

“Enteógeno” e “psicodélico” são talvez as mais conhecidas. Ambas surgiram como uma alternativa ao termo “alucinógeno”. Embora os três termos se refiram a um mesmo grupo de substâncias, eles se diferenciam sobretudo por critérios de finalidade e contexto. Enquanto “alucinógeno” passou a estar cada vez mais fortemente relacionado ao assim chamado “uso recreativo”, “psicodélico” foi um termo cunhado no meio psiquiátrico e ainda hoje é utilizado para se referir às potencialidades terapêuticas destes compostos. Por fim, “enteógeno” é um termo utilizado para se referir a substâncias utilizadas em um contexto ritual ou religioso, cujo consumo é normalmente visto como parte de um repertório maior de práticas espirituais, tais como o jejum, a meditação, o entoar de hinos e outras práticas coletivas de cunho religioso.

A rejeição do termo “alucinógeno” justifica-se por sua conotação de “alienação” ou fuga da realidade, como se a utilização destas substâncias, ao induzir uma percepção “errônea” do real, ainda que muitas vezes lúdica, não passasse de um escapismo irresponsável. A experiência alucinatória não poderia ser levada a sério, já que estaria associada a um fenômeno puramente imaginário, sem nenhuma correspondência com a realidade. Uma das justificativas para sua rejeição foi a associação entre “alucinação”, “delírio” e “loucura” ou “demência” ainda persistente na nossa forma de relacionar o uso de drogas com o desenvolvimento de psicopatologias.

Em 1957, o psiquiatra britânico Humphrey Osmond sugeriu a utilização do termo “psicodélico”, em substituição a palavras como “alucinógeno” ou “psicotomimético”, que é utilizada para designar substâncias capazes de provocar efeitos mentais semelhantes a estados psicóticos. Não obstante, Osmond chegou a sugerir em seus estudos que a mescalina, por exemplo, permitia a uma pessoa “normal” enxergar através dos olhos de um esquizofrênico e recomendou o seu uso no treinamento de médicos e outros profissionais em saúde mental, para que pudessem aperfeiçoar a compreensão que tinham de seus pacientes.

A palavra é um neologismo criado por Osmond em uma de suas correspondências com o escritor Aldous Huxley, famoso por seu livro “As Portas da Percepção”, onde relata sua experiência com mescalina. Etimológicamente, o termo é uma composição feita a partir de duas outras palavras de origem grega: psykhe (ψυχή), que significa “mente” ou “alma”; e deloun (δηλοῦν), “tornar visível”, “manifestar”. É importante lembrar que a psykhe grega tem uma conotação similar à da palavra geist, no alemão, que geralmente é traduzida como “espírito” mas que não tem uma correspondência exata na língua portuguesa; pode ser entendida no sentido platônico de “essência” ou como uma espécie de princípio invisível que sustenta e dá sentido à vida. Em sua representação antropomórfica, a deusa Psiquê é consorte de Eros, o deus grego do amor e teve com ele uma filha, chamada Hedonê (alegria/prazer).

deloun vem de delos (δήλος) que significa “visível”, “claro”; tem normalmente o sentido de “revelar”. Sua raiz indo-europeia dyeu (brilhar) deu origem, entre outros, ao latim deus e ao sânscrito deva (literalmente: aquele que brilha). Desta forma, psicodélico seria uma categoria de drogas que permitiriam observar a manifestação das características fundamentais da mente assim como ela realmente é.

Embora os psicodélicos estejam ligados originalmente ao contexto médico/terapêutico, sua popularização nos anos 1960 com o movimento hippie e a contracultura terminaram por estabelecer a associação do uso de drogas com uma espécie de contestação política e subversão num contexto marcado pela Guerra Fria e pela guerra do Vietnã. Por outro lado, a “atitude subversiva” relacionada ao uso de drogas pela juventude da época não era vista com bons olhos pela sociedade e governo conservadores, o que terminou por ressuscitar a antiga e falida política proibicionista aplicada ao álcool nas décadas de 1920 e 1930 – a famosa Lei Seca –, agora com contornos de coerção e perseguição política.

No final da década de 1970, outro neologismo foi criado por figuras eminentes no estudo das polêmicas substâncias alteradoras da consciência: “enteógeno”. Especialistas como Gordon Wasson, Jonathan Ott, Richard Evans Schultes, Carl Ruck entre outros, publicaram na revista Journal of Psychedelic Drugs de 1979 um artigo no qual argumentavam acerca da inadequação dos termos existentes e em favor de uma nova forma de falar sobre os compostos extraídos das “plantas de poder”, ou “plantas maestras”, como são conhecidas nos países de língua espanhola.

“Enteógeno” foi um termo cunhado com o objetivo de desvincular as substâncias de uso tradicional tanto dos valores (hedonistas ou subversivos) associados à contracultura norteamericana quanto às associações negativas vinculadas ao termo “alucinógeno”. Etimologicamente, origina-se também da associação entre duas palavras gregas: enthéos (ἔνθεος), que significa “ter Deus dentro de si” ou “estar preenchido por Deus” (mesma origem da palavra “entusiasmo”), e genéstai (γενέσθαι), que significa literalmente “vir a ser” ou “tornar-se”.

Eis a definição original proposta na Journal of Psychedelic Drugs de 1979:

“Strictu sensu, apenas aquelas drogas capazes de produzir visões [vision producing drugs] e que podem ter demostrada sua utilização em ritos xamânicos ou religiosos poderiam ser consideradas enteógenos, mas, num sentido mais amplo, o termo também poderia ser aplicado a outras drogas, tanto naturais como artificiais, que induzam alterações da consciência similares àquelas documentadas na ingestão ritual de enteógenos tradicionais.”

No Brasil, como em outros países, a permissão legal para o uso religioso destas substâncias foi uma vitória política importante para a própria sobrevivência de religiões como o Santo Daime ou a União do Vegetal, que sofriam repressão muitas vezes violenta por parte de polícia com base nas leis anti-drogas. Existe, por um lado, uma necessidade política de se utilizar uma linguagem própria, diferente da do discurso proibicionista, uma linguagem que reflita a importância e os valores propriamente religiosos envolvidos no consumo da substância, para que se possa conseguir alguma legitimidade tanto frente à opinião pública quanto ao Estado. Foi importante mostrar que os adeptos das religiões que têm o chá da ayahuasca como sacramento não eram “drogados”, nem “bandidos”, nem tinham apenas o objetivo de ficar “doidões”.

Por outro lado, a vinculação simbólica entre uso de drogas e criminalidade, bem como a reprovação moral do uso laico e recreacional é mantida no discurso religioso, juntamente com todo o sistema moral que fundamenta a coerção, a perseguição e muitas vezes o extermínio levados a cabo pela política de “Guerra às Drogas”. Ao estabelecer um uso específico como legítimo, excluindo todos os outros, o discurso religioso continua preso ao que o próprio Jonathan Ott chamou de “chauvinismo farmacológico”, ou seja, enquanto a substância de preferência é louvada de forma ufanista, cultivam-se os antigos preconceitos e estigmas em relação às substâncias de predileção alheia.

Ora, se por um lado a linguagem religiosa fornece uma forma de expressão mais livre da carga simbólica negativa que atrapalha e por vezes impede a discussão sobre o problema das drogas, termos como “enteógeno” ou “medicina” frequentemente implicam a manutenção do preconceito contra qualquer uso fora do contexto religioso ou terapêutico como “irresponsável” ou “desrespeitoso”, como se possuíssem algum tipo de exclusividade sobre as substâncias em questão.

Não se trata de dizer aqui que a linguagem cerimonial/religiosa é errônea ou inadequada, mas apenas apontar para a insuficiência conceitual de um vocabulário vinculado à um tipo de utilização específica destes fármacos. Num debate público, como é o caso na formulação de leis, por exemplo, deveríamos preferir a terminologia menos normativa possível e evitar ao máximo reproduzir e reforçar os tabus que fundamentam o quadro catastrófico produzido pela “Guerra às Drogas”.

Se o nosso foco é desenvolver uma linguagem mais compreensiva e menos normativa da relação das pessoas com suas substâncias, é preciso dar conta de seus usos de fato, dos contextos e motivos pelos quais esta relação é estabelecida, e não substituir um sistema normativo (o da proibição) por outro (o religioso) – ambos sustentados por critérios morais.

São ideais de temperança, absenteísmo, higiene social, disciplina fabril, normalização individual e repressão do gozo que estão em jogo. Olhar para o problema das drogas sem compreender o que a sua proibição significa em termos estruturais, os projetos de sociedade e ideais de progresso em conflito, é não compreender sua origem, sua motivação e o porquê de suas consequências não despertarem a fúria da opinião pública.

Romper com esta moralidade puritana e aceitar que nossas substâncias de preferência – seja a cafeína, o DMT ou a cocaína – não possuem uma natureza intrínseca, mas que seus significados são construídos coletivamente e em meio a relações de poder e dominação é urgente e fundamental. É preciso perceber que não existe uma “droga do mal” ou uma “droga do bem”, no sentido de que existe uma droga essencialmente boa ou essencialmente má. Assim como a energia elétrica, as substâncias químicas são apenas um fenômeno da natureza, não possuem um sentido em si. Seus sentidos e funções possíveis são dados por nós. O mesmo fenômeno que possibilita a ressuscitação em casos de parada cardíaca pode ser usado para construir um instrumento de execução, a cadeira elétrica.

Um ótimo exemplo: a heroína, que hoje constitui uma das principais catástrofes epidêmicas da história da saúde pública nos Estados Unidos foi originalmente produzida e distribuída para fins anestésicos. Era usada por veteranos mutilados pela Guerra de Secessão, uma droga típica de ex-soldados. De forma similar, hoje o MDMA (princípio ativo do ecstasy) está sendo cada vez mais estudado por suas propriedades terapêuticas em casos de Transtorno do Estresse Pós-Traumático, comum em jovens que retornam do Oriente Médio, por exemplo.

O álcool, por outro lado, que é consumido pela maioria da população hoje como uma espécie de “descanso do justo”, é um dos principais catalizadores da violência doméstica, violência no trânsito, violência sexual, além de doenças diversas. É preciso perceber que estas experiências são construções históricas que existem para além das substâncias em si, embora sejam catalisadas por elas. A violência doméstica é um problema estrutural típico de uma sociedade patriarcal, embora possa ser catalisada pelo consumo de álcool. O latrocínio é resultado de um problema estrutural de sociedades profundamente desiguais economicamente, embora possa ser catalisado pelo consumo de cocaína e seus derivados. Colocar a culpa da criminalidade nas drogas é querer suprimir um sintoma deixando de lado as suas causas. Culpar a maconha, a cocaína ou o álcool pela violência comum a grandes centros urbanos ou pela evasão escolar é desconhecer problemas estruturais das sociedades contemporâneas e deixar de reconhecer a nossa própria responsabilidade neste quadro.

Outra saída possível seria definir estas substâncias de acordo com a finalidade e os contextos em que são consumidas. Como já foi dito, “droga” é um termo moralmente neutro, quando utilizado em um contexto científico. Não obstante, a possibilidade de serem usadas com finalidades diferentes acaba por criar a necessidade de palavras mais específicas: remédio, veneno, estimulante, ansiolítico, psicodélico. Podemos ainda pensar que uma substância ou conjunto de substâncias que são utilizadas para melhorar a aparência é chamada, com razão, de “cosmético”. Se nos servimos dela para nossa nutrição, chamamos de alimento. Se a utilizamos para melhorar o sabor da comida, chamamos de tempero. Se a utilizamos para ter uma experiência mística de conexão com o divino, enteógeno, e assim por diante.

Isso não resolve o problema de se o açúcar é droga ou não é, ou se devemos ou não internar pessoas viciadas em crack, mas fornece uma boa pista de que, apesar de todos os problemas e limitações, a linguagem, por seu caráter elástico e adaptativo, pode fornecer saídas interessantes para os problemas criados por ela mesma.

Seria melhor então abandonar o uso do termo “droga”, com sua ambiguidade e carga simbólica negativa? Ou talvez fosse melhor militar pela desconstrução do tabu em torno do vício, do prazer, da liberdade individual e coletiva de experimentar o corpo e estados alterados de consciência? É uma questão sensível, que implica posicionamentos éticos e políticos, mas que deve ser enfrentada urgentemente, principalmente (mas não restritamente) pelos usuários destas substâncias.

O objetivo aqui não é oferecer uma resposta definitiva para os problemas levantados, mas apontar para a existência e sobretudo para a urgência destas questões. Cada palavra remete à um contexto, a um conjunto de representações sociais, preconceitos, normas, horizontes de expectativa. Não podemos continuar acreditando em essências supra-históricas no debate sobre drogas. É importante percebermos que estamos em posição de identificar as falhas nestas construções simbólicas e dar nossas próprias contribuições para o debate, um debate que nos afeta diretamente, diariamente.

Penso que uma das principais contribuições que podem ser dadas ao debate sobre drogas pela comunidade psicodélica seja a de uma educação sobre drogas livre do obscurantismo proibicionista, a postura firme de reavaliar os valores que associamos ao uso de tal e qual substância, desconstruindo preconceitos, tanto os ufanistas quanto os paranoicos, através da veiculação de informações responsáveis e confiáveis. É necessário que nos eduquemos. Esse é talvez o conselho mais valioso deixado por Terence McKenna: “the first stop on the psychedelic journey is the library”. A primeira parada na jornada psicodélica é a biblioteca!


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